“Não faças do amanhã
O sinônimo de nunca
Nem o ontem te seja o mesmo
Que nunca mais
Teus passos ficaram
Olhes para trás
Mas vá em frente
Pois há muitos que precisam
Que chegues para poderem seguir-te.”
— Charles Chaplin
Existem duas formas essenciais de sentir saudades. Uma delas, que pode-se chamar de shakespeariana (por causa de Romeu e Julieta), é a autodestrutiva, uma espécie de crise de abstinência, descrita muito bem naquela música da Sade: “sinto sua falta como os desertos sentem falta da chuva”. Sua outra faceta é a dependência, de modo que ela causa danos, ao menos a longo prazo. Mas como o amor pode destruir ao invés realizar? Não pode.
A palavra “amor” é talvez um dos termos mais usados em todos idiomas e, embora não pode-se dizer precisamente o que ele é – a despeito das tentativas dos grandes poetas -, pode-se dizer o que ele com certeza não é. Junto com a palavra “amor”, a palavra “coração” é muitas vezes arrastada para muitas conversas e usada para descrever todas as formas de comportamento bons e maus. Quando falamos de coração, nós queremos dizer o espaço no meio do peito que apontamos quando dizemos “este sou eu” – o lugar em que sentimos a essência do nosso ser mais do que em qualquer outro lugar. É também onde a maioria das nossas qualidades mais elevadas e mais nobres emanam – empatia, bondade e amor. Então, como alguém pode dizer “eu te amo” se seu “eu” é dependente de outrem? Pode um bêbado reivindicar seriedade em algo? Este tipo de saudade não diz portanto respeito ao outro, mas apenas do dependente: ela é uma matriz emaranhada de sentimentos da mente e também da parte emocional do nosso ser localizado bem mais próximo do umbigo do que de fato do coração.
A outra, que por certo é mais rara, pode ser chamada de epicurista. Epicuro de Samos, filósofo grego, morreu provavelmente de cálculos renais. Suportou as famosas dores renais até o fim. Em uma de suas últimas cartas a um amigo, diz que suas memórias da amizade não lhe causavam dor: eram, na verdade, o que o fazia feliz de ainda estar vivo. É a saudade dos sábios: alegrar-se por ter tido a sorte de ter algo tão precioso na vida, mesmo já tendo acabado, pois nenhum momento dura para sempre, e o que resta do êxtase é sempre a memória dele, não muito acurada, não muito certeira, mas um souvenir que te ancora ao conforto de saber que você esteve lá. Como todo sentimento profundo que parte de dentro para fora, em reflexo contínuo com outra pessoa, esta saudade apenas pode ser sentida, mas jamais explicada. E por senti-la, escrevo esssas linhas no intuito de apenas afirmar, como Epiruro fez: ela existe!
“Quando o amor é puro e espiritual, não há demanda, nem expectativa. Há somente o doce sentimento de unidade espontânea com o ser humano ou seres em causa.” dizia o sábio religioso Sri Chinmoy, nos dando a dica que resume bem a diferença desta saudade da shakespeariana. Pois se a epicurista evolve o puro amor, então não pode haver expectativas, logo dependência. É verdade que muitos acham que no amor, assim como na química, a ausência é falta. E falta de quem se ama gera dependência. Mas é possível não haver falta na ausência, desde que, como dizia Drummond, a ausência seja um estar em ti. [Na ausência dela] “sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.” Poucas coisas dentro de nós são tão resilientes quanto a saudade epicurista. Ao contrário do sol de inverno que iluma sem nos aquecer, ela preenche, nos marca e aquece. Para sempre.
Se há uma coisa com a qual a maioria das pessoas concorda é que é o amor que faz o mundo girar, e que sem ele, o mundo seria nada mais que uma concha seca em um lugar vazio. Por outro lado, “amor” é uma palavra que muitos desbobram em torno de seus próprios propósitos para justificar uma dependência emocional a uma pessoa. Ao sentir saudades, é possível identificar a virtude dos sentimentos que temos e dessa forma, julgar a essência do nosso amor. Uma vez identificada o segundo tipo, siga em frente como se nada mais valesse a pena. Não há nada a perder.
Por Lacombi Lauss