Eu particularmente, como fã assumido de epistemologia, gosto dos problemas mentais que a disciplina nos propõe. Vou compartilhar um aqui. O que é água? Como você a definiria de modo a distingui-la das demais substâncias? Imagino que o leitor sensato responderia: água é o elemento definido pela combinação química H2O. Certo, mas essa visão suscita um problema: e se, na verdade, descobríssemos que nossas teorias científicas estão todas erradas e que na verdade não existe nada tal como moléculas de hidrogênio e oxigênio, nós então concluiríamos que a água é inexistente?
Obviamente que não. Em vez disso, nós concluiríamos que estávamos errados em identificar a água como H2O. Nós acreditamos a) que a água e H2O são um, e assim b) que se não houvesse H2O, não haveria água. Ainda assim, nós também acreditamos c) que podemos identificar instâncias de água em nosso ambiente. No presente, essas crenças não nos envolvem em nenhuma inconsistência. Se, no entanto, viéssemos a acreditar (correta ou erroneamente) de que H2O não existe, seríamos forçados a escolher entre aceitar (a) e (b) por um lado, e aceitar (c) por outro; e se for verdade d) que sob essas circunstâncias mantivéssemos (c) e rejeitássemos (a) e (b), então a resposta para a questão “Se acontecesse de que não existe H2O isso significa que a existência da água deve ser rejeitada?” é sim se tomada no sentido metafísico (b) e não se tomada no sentido epistêmico (d).
Essa é uma variação do problema de Kirpke-Putnam e em suma expõe duas diferenças substânciais no que diz respeito a noções de identidade, a saber, o contrafactual metafísico (e se realmente fosse o caso de que p?) e o contrafactual epistêmico (e se viéssemos a acreditar que p?). Em minha opinião, isso pode ser colocado dentro do ponto de vista das doutrinas clássicas do gregos antigos, distinguindo dois princípios de uma substância X:
- principium essendi de X: aquilo em virtude do que X é;
- principium cognossendi de X: aquilo em virtude do que X pode ser reconhecido como sendo.
Assim, o H2O é o principium essendi da água; suas características superficiais estereotípicas, tais como a transparência, potabilidade, ausência de cor, ausência de odor, congelamento a 273.15K e evaporação a 373.15K não são o principium essendi, mas de fato constituem um principium cognossendi importante da água. Mas ambas essas crenças – a crença de que H2O é o principium essendi da água, e a crença de que as características superficiais são o principium cognossendi da água — estão, a princípio, abertas à revisão; e se elas entrarem em conflito, não há qualquer garantia de que a última crença, em vez da primeira, será revisada. O que é importante frisar aqui é que ambos princípios estão categoricamente separados e que portanto não há uma hierarquia entre eles: ambas podem entrar em conflito e serem descartadas uma em detrimento de outra ao sabor de nossas investigações a respeito da verdade.
Beleza. E aí? E o que a justiça tem a ver com tudo isso? Bem, meu ponto é que esses insights podem nos ajudar a capturar a essência daquele que é um dos mais interessantes problemas da justiça dentro do meio libertário: devemos defende-la porque ela inspira respeito entre as pessoas (deontologia) ou por ela ter boas consequências (consequencialismo)? E se determinada conduta moral não resultar em prosperidade entre os povos? Isso está ficando grande (pra variar), então vou pular uma série de pontos e enumerar minhas teses. Seja X uma conduta e considere as afirmações:
- Conduta X expressa respeito pelas pessoas.
- Expressar respeito pelas pessoas é um principium essendi da justiça.
- Ter boas consequências é um principium cognossendi da justiça.
Assim como um detector de madeira de sândalo pode tomar um certo cheiro como um sinal confiável da presença de madeira de sândalo sem tomar esse cheiro como sendo a essência da madeira de sândalo, também podemos tomar as consequências benéficas como sinais confiáveis da justificativa moral, embora não como sua essência. O ponto (1) é o princípio essendi da conduta X e o ponto dela ter boas consequências é seu princípio cognossendi. Se alguém deixar de acreditar que o respeito a X promove boas consequências, então ele deve escolher entre (3) e a correção ou incorreção quanto a X; e não há qualquer garantia quanto a justiça de X. Acreditar que A é o fundamento de B não lhe compromete a fazer sua crença em A ser o fundamento da sua crença em B; isto é confundir o terreno da explicação com o terreno do conhecimento – ou, nos termos de Aristóteles, o que é mais bem conhecido em si mesmo com o que é mais bem conhecido por nós. Em suma, é confundir principia essendi com principia cognossendi. Tanto (1) quanto (2) podem alterar nossa noção da conduta X ser justa ou não, da mesma forma que a existência do H2O e as propriedades físico-químicas da água, respectivamente, podem alterar nossa ideia de identidade a respeito da água.
O exemplo do H2O mostra que nós não estamos necessariamente mais fortemente comprometidos com crenças sobre principia essendi do que estamos sobre principia cognossendi. Então, ainda que os princípios estejam no cerne da justiça – seu princípio essendi -, as suas consequência também desempenham um papel importante na justiça da validade moral de um ato. Isso pode lançar luzes sobre aquela profunda intuição sobre problemas cotidianos, onde, após determinar qual lado tem uma reivindicação maior de justiça a seu lado, você passa a considerar qual lado do debate você acha que teria as melhores consequências. Eu suspeito fortemente que, para a maioria das pessoas, haverá poucas discrepâncias significativas entre as duas listas, isto se houver. Independente de nossas visões sobre o conteúdo da justiça, todos parecemos esperar que a implementação da justiça tenha boas consequências. Entretanto, a conexão entre os dois campos, se existir, ainda permanece (em minha opinião) obscura.
Por Lacombi Lauss