O que a epistemologia pode nos ensinar sobre a natureza da justiça?

Eu particularmente, como fã assumido de epistemologia, gosto dos problemas mentais que a disciplina nos propõe. Vou compartilhar um aqui. O que é água? Como você a definiria de modo a distingui-la das demais substâncias? Imagino que o leitor sensato responderia: água é o elemento definido pela combinação química H2O. Certo, mas essa visão suscita um problema: e se, na verdade, descobríssemos que nossas teorias científicas estão todas erradas e que na verdade não existe nada tal como moléculas de hidrogênio e oxigênio, nós então concluiríamos que a água é inexistente?

Obviamente que não. Em vez disso, nós concluiríamos que estávamos errados em identificar a água como H2O. Nós acreditamos a) que a água e H2O são um, e assim b) que se não houvesse H2O, não haveria água. Ainda assim, nós também acreditamos c) que podemos identificar instâncias de água em nosso ambiente. No presente, essas crenças não nos envolvem em nenhuma inconsistência. Se, no entanto, viéssemos a acreditar (correta ou erroneamente) de que H2O não existe, seríamos forçados a escolher entre aceitar (a) e (b) por um lado, e aceitar (c) por outro; e se for verdade d) que sob essas circunstâncias mantivéssemos (c) e rejeitássemos (a) e (b), então a resposta para a questão “Se acontecesse de que não existe H2O isso significa que a existência da água deve ser rejeitada?” é sim se tomada no sentido metafísico (b) e não se tomada no sentido epistêmico (d).

Essa é uma variação do problema de Kirpke-Putnam e em suma expõe duas diferenças substânciais no que diz respeito a noções de identidade, a saber, o contrafactual metafísico (e se realmente fosse o caso de que p?) e o contrafactual epistêmico (e se viéssemos a acreditar que p?). Em minha opinião, isso pode ser colocado dentro do ponto de vista das doutrinas clássicas do gregos antigos, distinguindo dois princípios de uma substância X:

  • principium essendi de X: aquilo em virtude do que X é;
  • principium cognossendi de X: aquilo em virtude do que X pode ser reconhecido como sendo.

Assim, o H2O é o principium essendi da água; suas características superficiais estereotípicas, tais como a transparência, potabilidade, ausência de cor, ausência de odor, congelamento a 273.15K e evaporação a 373.15K não são o principium essendi, mas de fato constituem um principium cognossendi importante da água. Mas ambas essas crenças – a crença de que H2O é o principium essendi da água, e a crença de que as características superficiais são o principium cognossendi da água — estão, a princípio, abertas à revisão; e se elas entrarem em conflito, não há qualquer garantia de que a última crença, em vez da primeira, será revisada. O que é importante frisar aqui é que ambos princípios estão categoricamente separados e que portanto não há uma hierarquia entre eles: ambas podem entrar em conflito e serem descartadas uma em detrimento de outra ao sabor de nossas investigações a respeito da verdade.

Beleza. E aí? E o que a justiça tem a ver com tudo isso? Bem, meu ponto é que esses insights podem nos ajudar a capturar a essência daquele que é um dos mais interessantes problemas da justiça dentro do meio libertário: devemos defende-la porque ela inspira respeito entre as pessoas (deontologia) ou por ela ter boas consequências (consequencialismo)? E se determinada conduta moral não resultar em prosperidade entre os povos? Isso está ficando grande (pra variar), então vou pular uma série de pontos e enumerar minhas teses. Seja X uma conduta e considere as afirmações:

  1. Conduta X expressa respeito pelas pessoas.
  2. Expressar respeito pelas pessoas é um principium essendi da justiça.
  3. Ter boas consequências é um principium cognossendi da justiça.

Assim como um detector de madeira de sândalo pode tomar um certo cheiro como um sinal confiável da presença de madeira de sândalo sem tomar esse cheiro como sendo a essência da madeira de sândalo, também podemos tomar as consequências benéficas como sinais confiáveis da justificativa moral, embora não como sua essência. O ponto (1) é o princípio essendi da conduta X e o ponto dela ter boas consequências é seu princípio cognossendi. Se alguém deixar de acreditar que o respeito a X promove boas consequências, então ele deve escolher entre (3) e a correção ou incorreção quanto a X; e não há qualquer garantia quanto a justiça de X. Acreditar que A é o fundamento de B não lhe compromete a fazer sua crença em A ser o fundamento da sua crença em B; isto é confundir o terreno da explicação com o terreno do conhecimento – ou, nos termos de Aristóteles, o que é mais bem conhecido em si mesmo com o que é mais bem conhecido por nós. Em suma, é confundir principia essendi com principia cognossendi. Tanto (1) quanto (2) podem alterar nossa noção da conduta X ser justa ou não, da mesma forma que a existência do H2O e as propriedades físico-químicas da água, respectivamente, podem alterar nossa ideia de identidade a respeito da água.

O exemplo do H2O mostra que nós não estamos necessariamente mais fortemente comprometidos com crenças sobre principia essendi do que estamos sobre principia cognossendi. Então, ainda que os princípios estejam no cerne da justiça – seu princípio essendi -, as suas consequência também desempenham um papel importante na justiça da validade moral de um ato. Isso pode lançar luzes sobre aquela profunda intuição sobre problemas cotidianos, onde, após determinar qual lado tem uma reivindicação maior de justiça a seu lado, você passa a considerar qual lado do debate você acha que teria as melhores consequências. Eu suspeito fortemente que, para a maioria das pessoas, haverá poucas discrepâncias significativas entre as duas listas, isto se houver. Independente de nossas visões sobre o conteúdo da justiça, todos parecemos esperar que a implementação da justiça tenha boas consequências. Entretanto, a conexão entre os dois campos, se existir, ainda permanece (em minha opinião) obscura.

Por Lacombi Lauss

A desconstrução da arte

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Fonte (1917)

Uma vez um grande amigo me pediu para eu marcar um ponto chave na decadência artística ocidental, provavelmente esperando que eu dissesse algo a respeito do pós-modernismo. Mas em arte, minha tese é que ele não se distingue fundamentalmente da modernidade, mas é sua consequência lógica inexorável. Uma indicação desse fato, reside na minha própria resposta à pergunta dele: a Fonte (1917) de Marcel Duchamp, o pai do modernismo. Uma pessoa atenta logo verá que a “obra” representa as principais teses pós-modernas sobre a arte, a saber, (i) o artista não é um grande criador – Duchamp foi às compras em uma loja de encanamento; (ii) a obra de arte não é um objeto especial – ele foi produzido em massa em uma fábrica; (iii) a experiência da arte não é emocionante e enobrecedora – é intrigante e nos deixa com uma sensação de desgosto. Mas muito além disso, Duchamp não selecionou apenas um objeto pronto e acabado para exibir. Ele poderia ter escolhido uma pia ou uma maçaneta. Ao selecionar o mictório, a sua mensagem era clara: (iv) a arte é algo no que você urina.

Despida de seus significados de beleza e realismo, a arte passa a ser um empreendimento puramente filosófico, ao invés de artístico. Eis então que emerge nosso bem conhecido conceito de desconstrução. Se o objetivo condutor do (pós)modernismo não é fazer arte, mas descobrir o que é arte, então o jeito é desconstruí-la: nós eliminamos X – ainda é arte? Agora nós eliminamos Y – ainda é arte? A finalidade de objetos de arte é como a sinalização ao longo da rodovia – não como objetos de contemplação, mas como marcadores para nos dizer o quão longe viajamos por uma determinada estrada. Este foi o ponto de Duchamp, quando observou ele, desdenhosamente, que a maioria dos críticos tinha perdido o ponto: “Eu joguei o porta-garrafas e o mictório em seus rostos como um desafio, e agora eles os admiram por sua beleza estética”. O mictório não é arte, é um dispositivo usado como parte de um exercício intelectual para descobrir por que ele não é arte.

O homem moderno não teve resposta ao desafio de Duchamp, e na década de 1960 ele percebeu que havia atingido um beco sem saída. Na medida em que a arte moderna tinha conteúdo, seu pessimismo levou à conclusão de que nada valia a pena dizer. Na medida em que ele jogou a eliminação redutiva, ele descobriu que nada de unicamente artístico sobreviveu à eliminação. Arte tornou-se nada. Andy Warhol encontrou seu caminho sorridente habitual para anunciar o fim, quando perguntado o que ele achava o que ainda era a arte: “Arte? Oh, é o nome de um homem”.

Por Lacombi Lauss

A “descontrução” e a passagem do modernismo para o pós-modernismo

Se pudéssemos resumir todo o pós-modernismo em apenas uma palavra, ela seria: desconstrução. Após a queda do muro de Berlim, dando um fim trágico às utopias socialistas da new-left, o mundo moderno se impregnou de tédio. Passou a existir um sentimento de cansaço mesmo dentro do mundo da arte, um sentimento de que toda a badalação da mídia e os dólares estão sendo dirigidos para esforços que simplesmente são em vão, pois, haja visto o fracasso de inúmeras experiências socialistas, nada de realmente novo poderia ter lugar. Intelectual e emocionalmente, os artistas e autores da modernidade não conseguiram superar o pessimismo profundo adotado no século passado – eles genuinamente sentiram que tudo é vazio e saturado – então, a modernidade pensou que não há nada a fazer além de transferir a sua energia criativa para repetir e repetir os mesmos temas.

Eis então que a pós-modernidade entrou em cena e resolveu desconstruir todas reivindicações de objetividade, realidade e verdade. O ressentimento em virtude da dramática imposição da realidade, foi finalmente superado da maneira mais hegeliana possível: agora, é a própria realidade que deve ser entendida como o fruto do ressentimento do homem moderno.

Mas se não existe um mundo objetivo ou um “eu” para entender e ajustar nossos termos, então qual é o propósito do pensamento ou da ação humana? Tendo a razão desconstruída, a verdade, e a ideia de correspondência do pensamento com a realidade, para, em seguida, colocá-las de lado – a “razão”, escreve Foucault, “é a linguagem final da loucura” – não há nada mais para guiar ou restringir nossos pensamentos e sentimentos. Assim, podemos dizer ou fazer tudo de acordo com nossos sentimentos. “A desconstrução”, Stanley Fish confessa com regozijo, “me alivia da obrigação de estar certo … e exige apenas que eu seja interessante.” A pós-modernidade é então a suprema infantilização homem, quando, como uma criança mimada, ele se depara com os limites impostos pela realidade e diz: “foda-se a realidade, ela que se ajuste ao meu umbigo.”

Por Lacombi Lauss

A Escola Austríaca e o amor

Esse pequeno texto vai para quem gostar de investigar os fenômenos do amor, ao mesmo tempo em que tem algum interesse na Escola Austríaca. O ponto de partida motivador é: como o individualismo metodológico pode nos ajudar a entender um fenômeno social tão complicado e que parece ser motivado por puro desinteresse? Ayn Rand nos deu algumas dicas, ao fornecer uma abordagem egoísta ao amor. Mas nesse texto procuro uma abordagem wertfrei, isenta de juízos de valor e que seja genuinamente austríaca. Outro ponto a favor da análise austríaca é mostrar o quão geral pode ser a sistemática misesiana, que generalizou a metodologia apriorista clássica, dissecando-a, esculpindo-a e finalmente deixando aquilo que era ao mesmo tempo imprescindível e incontestável: os pressupostos da ação. As abstrações da primeira onda metodológica, como o homo economicus de Mill foram finalmente descartadas para dar lugar a uma robusta e poderosa axiomática kantiana capaz de generalizar todos os fenômenos econômicos a toda escala das interações do homem em sociedade, como é o caso do amor, a ser tratado brevemente nesse post.

Aqui, quando digo “amor”, não me refiro a apenas gostar muito de alguém, ou do afeto parental. Quero ser radical no conceito de amor e me referir às suas versões mais loucas e intensas. Não quero abordar o homem que decide sair de casa para morar com alguém que ele ama, mas sim a amores verdadeiramente doentios, capazes de movimentar mais de 20 mil homens em prol de uma demonstração de afeto, como o fez imperador Shah Jahan quando resolveu homenagear e eternizar seu grande amor, que ele chamava de Mumtaz Mahal (“A joia do palácio”), como o épico Taj Mahal, um das setes maiores maravilhas do planeta. Me refiro a casos magnânimos como o do grande teólogo, filósofo escolástico e lógico Pedro Abelardo que arriscou a própria vida em virtude de seu grande amor, Heloísa de Paráclito. Abelardo sofreu preconceitos, boicotes e até foi vítima de uma castração por ter insistido em seu amor proibido. Estamos portanto falando do tipo mais profundo de amor, que pode somente ser entendido se for sentido. O tipo de amor que te faria pular de uma ponte se necessário.

Começamos com o postulado misesiano, que afirma que o homem age intencionalmente a fim de mudar um estado de coisas que são subjetivamente percebidas e avaliadas como menos satisfatórias para um estado que aparente ser mais compensador. O seus fins determinarão a maneira pela qual irá manejar o meios – necessariamente escassos – segundo suas escalas de preferência. E tais preferências, para o economista austríaco, só podem ser determinadas na própria praxis humana: eis o precioso conceito de preferência demonstrada. Como ilustração, imagine que você tenha uma garrafa de água. Com o seu conteúdo, você tem opções: i) bebê-la, ii) lavar suas mãos, iii) jogá-la em alguém ou fazer outra coisa. Se você escolher bebê-la, por exemplo, você terá demonstrado que matar a sua sede era o objetivo mais elevado em sua escala de valores naquele momento. Afinal, se você achasse mais importante lavar as mãos que matar a sede, você teria agido de forma diferente. Sua ação relevou sua preferência. Outro ponto de fundamental importância é que antes da ação, antes de você decidir entre (i)-(iii), a situação, para um expectador, é praticamente a mesma do famoso gato de Schrödinger. Dada as subjetividades envolvidas nas preferências, é impossível que terceiros a determinem precisamente ou até estatisticamente um escala de valores antes da ação. Também é corolário da subjetividade das valorizações que é impossível fazer uma comparação interpessoal de utilidade. Em outras palavras, a felicidade ou a utilidade resultante de um ato não pode ser mensurada em uma escala quantitativa da mesma forma que, por exemplo, a tensão elétrica pode.

Os mesmos princípios se aplicam quando você está apaixonado. Se o objetivo mais elevado em sua escala de valores é a expressão de amor, você agirá de acordo. Se você se der conta que para exercer seu amor você deve cortar o mundo, então você irá atrás do avião. É claro, de fora, as pessoas pensariam que você é louco, mas internamente, você está agindo racionalmente de acordo com seus objetivos. Não nada há de irracional aqui, dada a subjetividade das preferências. Sob o prisma da economia austríaca, nós podemos encarar a loucura aparente em sanidade. Então, se você ver alguém profundamente apaixonado e fazendo “loucuras” de amor, fique tranquilo: não há ninguém louco. Entenda o romance pela perspectiva da ação e perceba: ele está simplesmente agindo de acordo com suas preferências.

Você também pode pensar em se apaixonar como um simples reordenamento de suas preferências – por mais que isso não seja romântico. E esse reordenamento pode ser radical. Você acaba valorizando outra pessoa mais que você mesmo, o que explica totalmente o porquê uma pessoa apaixonada se atirar em frente a um trem para salvar a pessoa amada. O caso do grande general da história romana, Marco Antônio, é bem ilustrativo. Acreditando nos boatos de que Cleópatra já estava morta, Marco Antônio cometeu suicídio, apunhalando-se com sua espada. A preferência demonstrada aqui é clara: o valor da vida dele era igual ao valor de seu amor. Sem amor, não havia mais razão para viver. Então, em última instância, embora eu esteja certo de que ele estava deprimido e entristecido, seu suicídio foi uma decisão racional. Ele não valorizava uma vida sem o amor de Cleópatra. E tal valorização era subjetiva e individual, não sendo portanto passível de comparações interpessoais.

Por Lacombi Lauss

Razão e pós-modernismo

Por que a pós-modernidade é argumentativamente injustificável

Muitos pós-modernos “desconstroem” a razão, a verdade e a realidade porque eles acreditam que, em nome da razão, da verdade e da realidade, a civilização Ocidental tem feito dominação, opressão e destruição. “Razão e poder são uma e a mesma coisa”, afirma Jean-François Lyotard. “A razão”, escreve Foucault, “é a linguagem final da loucura.” Razão e poder levam e são sinônimo de “prisões, proibições, processo de seleção, o bem público.”

O pós-modernismo torna-se então uma estratégia ativista contra a coalizão da razão e do poder. O pós-modernismo, Frank Lentricchia explica, “não visa encontrar a fundação e as condições de verdade, mas de exercer o poder com o propósito de mudança social.” A tarefa de pensadores pós-modernos é a de ajudar as pessoas a “confrontar e trabalhar contra os horrores políticos do seu tempo.”

Uma troca de argumentos constitui uma argumentação de fato somente se todos os participantes reconhecem certos fatos e respeitam certas normas – normas essas que ninguém pode argumentar serem inválidas porque a adesão a essas normas é uma condição necessária para se engajar na argumentação. A argumentação não se dá e não pode ocorrer em um vácuo normativo. É papel do eticista desvendar o a priori da argumentação e extrair dele as normas necessárias para que a argumentação tenha lugar. Nesse pequeno texto vamos explicitar a norma da necessidade da razão e usá-la contra a pós-modernidade.

Não se pode propor a sério o argumento de que determinado ponto não é passível de discussão, que ele não tem pretensões de validade lógica, ou que não se deveria levar a sério a validade lógica de um argumento, sem destruir o próprio ponto de fazer o argumento de tal proposta – seja ele qual for. Uma contradição dialética emerge quando alguém afirma: Você deve levar a sério o argumento de que você deve não tomar meus pontos a sério. Aquele que seriamente faz um argumento, na verdade refere-se a si mesmo e, pelo menos, aos membros de seu público-alvo, para a norma de que deve-se tomar o seu próprio argumento ou o de outro como racional e que não deve-se descartar o argumento ou as dúvidas ou os contra-argumentos de outros sem dar razões pertinentes relevantes para fazê-lo. Assim, quando a afirmação de que “não se deve levar a sério a razão ou a argumentação” for feita, esta alegação é apresentada não como uma piada, mas como uma proposta séria de argumentação, então a norma oposta “Você deve levar a razão e a argumentação a sério”, é em qualquer caso simultaneamente postulada ou pressuposta como válida e necessária, e é, além disso, argumentativamente ou dialeticamente irrefutável.

O ponto de envolver outra pessoa em uma argumentação é fazê-la compreender as razões ou argumentos para se acreditar, dizer ou fazer algo, de tal forma que ela é convencida à conclusão de que, crer, dizer, ou fazer de acordo com o argumento é justificado como sendo em consonância com a razão. Não há nenhum ponto em convencer um interlocutor em entender o porquê ele não deveria pedir razões, ou o porquê ele não deve responder a pedidos de razões. O que, na verdade, devemos fazer do argumento “Aqui há fortes razões pelas quais não podem haver razões convincentes”? Reivindicações como essa configuram contradições performáticas e devem portanto ser descartadas como incompatíveis com os pressupostos da argumentação. O discurso pós-moderno tem a mesma validade argumentativa que um soco ou um grunhido de um animal.

Por Lacombi Lauss

Uma refutação austríaca do materialismo histórico de Marx

Vou apresentar aqui uma crítica misesiana do materialismo histórico de Marx, que contrapõe a essência dessa teoria, a saber, a afirmação de que estado do conhecimento tecnológico prático ou a qualidade tecnológica das ferramentas e máquinas utilizadas na produção deve ser considerado uma característica essencial das forças materiais produtivas, que determinam singularmente as relações de produção e, por consequência, toda a superestrutura na sociedade. Com relação isto, destacam-se três pontos chaves:

(i) Em primeiro lugar, o nome: o termo materialismo é no mínimo estranho, pois apesar de máquinas e ferramentas serem de fato materiais, o processo que as originou é essencialmente mental. São as ideias dos homens em sociedade que dão origem a todas as inovações e é esse processo criativo que, em última análise, influencia a história. No entanto, Marx ignora esse ponto e descreve, erroneamente, o surgimento de novas tecnologias como um fato material original, fornecido pela natureza, como se, do nada, caísse de paraquedas sobre a humanidade. Ao não tentar explicar como ocorrem as invenções, ele acaba se esquecendo o papel das ideias no jogo da história e que, na verdade, o processo mental criativo é um fato irredutível na natureza humana.

(ii) Aqui entra a primeira contradição nessa concepção marxista. Não é possível, simultaneamente, glorificar o surgimento de novos meios produtivos e ao mesmo tempo atacar o acúmulo de capital, pois sem o último, é virtualmente impossível haver qualquer inovação. O conceito de preferência temporal é inevitável aqui, pois o homem só trocará um bem presente por um bem futuro se esperar um aumento da sua quantidade de bens futuros. A taxa de preferência temporal, vai determinar a recompensa que apresentam os bens presentes em relação aos bens futuros e o montante de poupança e de investimento. E daí surge naturalmente a taxa de juros, que é o reflexo das preferencias temporais subjetivas de cada indivíduo em sociedade. Assim, nenhuma oferta de novos bens produtivos é possível sem a abstenção de um possível consumo de bens presentes (um excesso de produção atual em relação ao consumo atual). E nenhuma demanda por empréstimos existiria se ninguém vislumbrasse uma oportunidade de empregar produtivamente bens presentes – i.e., de investi-los com a finalidade de efetuar uma produção futura que fosse superior aos atuais bens presentes. A oferta de empréstimos só surge se, em primeiro lugar, for reconhecido que os processos indiretos de produção (mais complexos) geram uma maior ou melhor produção por insumo do que os processos diretos (menos complexos). Curiosamente, é precisamente esse conceito de preferência temporal e a explanação aqui desenvolvida que explica o lucro do empresário, pois o montante a mais é justamente originado pela abstenção de consumo passado, mais o rendimento dos novos ativos produzidos. Mises resume assim: “O que é necessário, além do planejamento e conhecimento tecnológico, é um capital acumulado anteriormente através da poupança. Cada passo dado no caminho rumo à melhoria tecnológica pressupõe o capital necessário. As nações chamadas hoje em dia de subdesenvolvidas sabem o que é necessário para melhorar o seu aparato atrasado de produção. Os projetos para a construção de to- das as máquinas que eles querem adquirir estão prontos ou poderiam ser terminados num espaço muito curto de tempo. É apenas a falta de capital que os impede.” A conclusão é que as relações de produção na verdade não se originam das forças materiais produtivas mas, pelo contrário, são uma condição indispensável para que estas venham a existir.

(iii) Nosso último ponto, e talvez o mais importante, é o seguinte: a utilização das máquinas pressupõe uma divisão social do trabalho. Isso implica que o argumento marxista é circular. Vejamos. A divisão do trabalho é um processo chave da civilização e essencialmente natural e espontâneo, emergindo das naturais diferenças entre os seres humanos. Trata-se também de um processo de cooperação, sem o qual nenhuma máquina pode, virtualmente, vir a ser criada e utilizada. Sendo que os laços humanos em sociedade são estritamente necessários para o surgimento dos fatores de produção, então como estes podem ser usados para explicar as origens da sociedade? As forças materiais produtivas só podem surgir dentro de um esquema de um nexo social pré-existente e, como pontuado no primeiro item, não se originam do nada, como um “free lunch” dado pela natureza.

Por Lacombi Lauss

Anarcocapitalismo como uma anti-ideologia

É interessante notar que os melhores argumentos a favor do estado usados pelos estatistas em geral constituem, na verdade, quando bem analisados, excelentes argumentos contra o estado. Dois exemplos básicos nos vem em mente de imediato:

1) O do Hobbes diz que em estado natural as pessoas iriam reivindicar cada vez mais direitos, ao invés de menos, levando a conflitos incessantes e cada vez maiores. Urge então a necessidade de um arbitrador soberano, acima e exterior à sociedade civil. A ideia jurídica por trás disso é clara: acordos requerem um fiscal externo que os torne vinculantes. O estado não pode portanto seguir daí, pois quem iria tornar esse mesmo acordo vinculante, se não há árbitros fora do estado? De duas, uma: ou será necessária a instauração de outro estado (caindo em regressão infinita) ou o próprio estado hobbesiano está, por si só, em estado de anarquia dentro de si mesmo. Na prática, nos encontramos no segundo caso, onde o estado não está vinculado a nenhum fiscal externo. Não há contratos fora do estado de modo que todos conflitos envolvendo-o (seja dele com cidadãos privados, seja entre ele e seus parasitas) será sempre resolvido dentro de seus próprios mecanismos jurídicos, com suas próprias autoimpostas regras, i.e, com as restrições que ele mesmo, e apenas ele, se impõe a si. Em relação a si próprio, o estado ainda está no estado natural de anarquia caracterizada pela autofiscalização e pelo autocontrole, da mesma forma que a sociedade em “estado natural”. Só que pior: dado que o homem é como ele é, e dado que o estado é formado por homens, ele tem uma tendência natural a mediar seus conflitos em seu próprio benefício, em detrimento dos cidadãos privados. O totalitarismo é seu destino inevitável.

2) Ayn Rand argumenta que uma sociedade anarquista não poderia proporcionar uma divisão de trabalho na produção da lei, porque a aplicação da lei, normalmente, requer o uso de força física, e se apenas alguns membros da sociedade estão se especializando no uso de força física, então todos os outros na sociedade ficarão à mercê. Mas se esta é uma objeção à anarquia, por que não é uma objeção ainda mais forte para o estado, já que o estado, ao contrário de uma agência de segurança sob a anarquia, está desprovido de quaisquer rivais, logo, está numa posição ainda melhor para abusar do seu poder? Como Molinari ressaltou, as leis econômicas são universais, não dando brechas para exceções. Rand prossegue vislumbrando uma utopia minarquista em que as ações estatais estão “rigidamente definidas, delimitadas e circunscritas,” enquanto o próprio governo é “como um robô impessoal”, operando livre de qualquer “toque de arbitrariedade e capricho”. Isso pode parecer razoável à primeira vista, mas, afinal, o estado é uma instituição de natureza definitiva, e as ações esperadas disso são determinadas pela sua natureza e não pelos nossos desejos e fantasias. Então a verdadeira questão é se é realista esperar este tipo de operação automática e imparcial de um monopólio centralizado. E de fato, não é. O poder corrompe, porque atrai o corruptível. E o sistema de incentivos de um monopólio estatal é verdadeiramente perverso. A história está aí para mostrar que como tendência geral, a liberdade humana é cada vez mais sufocada pela ameaça estatista.

O importante de se notar nesses pontos é que o argumento geral do anarcocapitalismo é na verdade um contra-argumento. Como uma genuína filosofia pró-liberdade, o anarcocapitalismo não nos diz o que é certo, o que deve ser feito para atingirmos determinados fins desejáveis, mas apenas diz, através da lógica e argumentos a priori, o que certamente sabemos que é errado. E o estatismo definitivamente figura nessa lista.

Por Lacombi Lauss

O mito da constituição americana

Apesar das experiências comunistas, poucos povos viveram uma tamanha virada radical ao totalitarismo quanto os EUA – um país fundado em ideais genuinamente libertários por pessoas que entenderam perfeitamente o mal do estatismo e da concentração de poder. Logo no início, em 1720, podia-se ler nas Cartas de Catão que circulavam entre os revolucionários: “Sabemos, através de infinitos exemplos e experiências, que os homens que possuem o poder, no lugar de abandoná-lo, farão qualquer coisa, até mesmo as piores e mais sinistras, para manter-se nele; e dificilmente algum homem na Terra o abandonou enquanto pudesse realizar tudo de sua própria maneira nele. (…) Esta parece uma certeza: o bem do mundo, ou do povo, nunca foi uma de suas motivações, seja para permanecer no poder ou para abandoná-lo.” Mas as ideias corretas não tiveram respaldo na prática política e, em 1787, a semente do mal foi plantada com a convenção de Filadélfia em que a constituição foi redigida. Tratou-se de um verdadeiro golpe de estado, centralizando o poder e destruindo os arranjos muito mais toleráveis dos Artigos da Confederação. Como Hoppe mostrou em teoria, uma vez estabelecido o governo constitucional, o estado tende a se tornar absoluto em direito, não dando espaço para a retirada de consenso: a obediência perante o estado é sempre uma via de mão única.

É fato que a constituição americana, em tese, proibia cabalmente o exercício de políticas esquerdistas (bem-estar social) e direitistas (belicismo). E é claro também que o significado geral da constituição não dá margens para dúvidas: o princípio dominante de que tudo o que o Governo Federal não está autorizado a fazer, está proibido de fazer. A décima emenda, por exemplo, proíbe o Governo Federal de exercer quaisquer poderes não especificamente atribuídos a ele pela constituição. Isso por si só invalidaria o estado de bem-estar social e, de fato, praticamente toda a legislação progressista. Mas quem se importa? Até mesmo o famoso jurista constitucional Robert Bork considerou a Décima Emenda politicamente inexequível.

A constituição americana já pode ser considerada morta desde a Guerra Civil, quando o direito de secessão foi negado aos estados do Sul. Ora, mas isso não era constitucional? Os estados federados não poderiam retirar-se da União? Lincoln, um dos mais repugnantes seres-vivos que já pairaram sobre a Terra, praticamente declarou que a União era “indissolúvel”, a menos que todos os estados federados concordassem em dissolvê-la. Em termos práticos, a Guerra Civil estabeleceu isso. Mais uma vez Hoppe acertou: é sempre o próprio estado que irá decidir, pela força, o que a constituição “significa” firmemente decidindo a seu próprio favor e aumentando seu próprio poder em prol dos caprichos pessoais da casta política. Isto é verdade a priori, e a história americana apenas ilustrou isso. Assim, as pessoas são obrigadas a obedecer ao governo, mesmo quando os governantes traem seu juramento perante Deus de defender a constituição.

Daí em diante, as portas para o socialismo estavam escancaradas e o New Deal de Roosevelt foi a prova final desse fato. A América olhou calada a mais uma grave usurpação de poder, dessa vez de viés esquerdista, um claro golpe inconstitucional. Roosevelt e seus asseclas da Suprema Corte interpretaram a Cláusula do Comércio de forma tão abrangente de modo a autorizar praticamente qualquer reivindicação federal, e a Décima Emenda de forma tão restrita de forma a privá-la de qualquer força para frear tais reinvindicações. Hoje, essas heresias são tão firmemente arraigadas que o Congresso raramente ainda se pergunta se uma proposta de lei é autorizada ou proibida pela constituição.

Não há mais constituição na América. Ela está oficialmente morta. E como na maioria dos países ao longo do globo, os americanos estão à mercê dos caprichos dos políticos. Tudo isso porque seus antepassados deram a eles o poder de interpretar suas próprias limitações de poder. O resultado está aí: Clinton, Sanders, Trump e o poder ilimitado.

Por Lacombi Lauss